
TRANSVERSAIS, 2015
coleção de graduação do curso de Moda da Faculdade Santa Marcelina, livremente inspirada em espelhos, imagens e sentidos do vestir-se contemporâneo.
metodologia completa: http://pergamumweb.santamarcelina.edu.br:8080/pergamumweb/vinculos/00003d/00003dd1.pdf
Condutores de percepção
por Jeff Pinheiro, dezembro de 2015
Imersos no caos contemporâneo no almejo de encontros sinceros, sentidos e afloramentos de idiossincrasias emerge a crescente visibilidade do resgate humano promovido pelas manifestações criativas que orbitam em torno do campo conhecido como arte. No olhar voltado para o inconsciente humano (suscitado em parte por produções em cinema, teatro e exposições de arte correlatas ao Surrealismo como a de Salvador Dalí no Instituto Tomie Ohtake) emerge concomitantemente em diversas manifestações artísticas a presença do espelho. Desde o cinema popular (com o anuncio do lançamento de “Alice Através do Espelho” para 2016) até as manifestações de produção em moda (na alfaiataria de Thom Browne apresentada no primeiro semestre de 2015 em uma sala de espelhos) muitos parecem estar em sintonia com a figura do espelho (talvez na busca moral de si. No resgate da frase “Torna-te o que tu és”). Respectivamente ao relatado anteriormente, a produção desenfreada em moda (recentemente questionada por Raf Simons aparentemente culminando em sua saída da Maison Dior e Li Edelkoort com o manifesto Anti_Fashion) constitui um sintoma convidativo à reflexão acerca de si mesma.
Em consonância com as emergências e produções contemporâneas Leandro Castro (na apresentação da coleção TRANSVERSAIS) canaliza a lei moral, por meio da metáfora do espelho e convida o entorno a vestir-SE (vestir a si mesmo. Vestir uma realidade.) no intento de convida-lo a trilhar seus próprios caminhos em busca de suas respectivas identidades. Na investigação dos anos que precedem a produção de TRANSVERSAIS é possível notar tópicos previamente trabalhados, laboriosamente lapidados por Leandro ao longo de sua produção que reemergem em diferentes campos da área criativa (como na produção poético-espacial da instalação “Reflexos” que sensivelmente desdobra-se para a área do design de moda em coleção de roupas) podendo citar: os fundamentos de M. Merleau-Ponty sobre o corpo e o olhar. / Os estudos acerca da construção do vestuário tradicional e contemporâneo. / O tênue equilíbrio entre questões ônticas e ontológicas. / O estudo e produção no campo das artes plásticas (como a proposição do não-lugar no livro imagético “Corredor de Espectros”, e composições de campos plásticos bidimensionais como: pinturas, colagens e desenhos cegos).
Ponty está presente como pilar norteador conceitual e o espelho (dentre outros desdobramentos), no ato de contempla-lo, relembra-nos que somos videntes visíveis. TRANSVERSAIS reflete os tempos atuais (e o espaço circundante) como um espelho e canaliza como uma lente (para vermos o que está além sob uma perspectiva diferente). Leandro atenta para o cuidado com a tradição (assim como a inclinação oriental que comumente apoia-se no substrato tradicional para a concepção do novo – como a russa Asiya Bareeva que produz através de traços de reelaboração de vestimentas tradicionais russas, e em sua última coleção questiona a presença da face em fotos diante de uma parede espelhada./ Rei Kawakubo vai em direção ao não existente acompanhada por paletós e kimonos). Compreendendo a importância da alfaiataria tradicional no vestuário masculino ocidental, Leandro emprega as práticas da alfaiataria como substrato criador e as relaciona com os democráticos meios de produção industrial (evocados pela camiseta de malha branca). Esses meios de reconciliação (tão necessários à moda contemporânea) entre artesanal e industrial são consonantes ao anseio de reconciliação entre arte e indústria pelo grupo Neoconcreto.
Em confronto com a monotonia e frieza do geometrismo do senso comum, Os planos saltam de suas convenções chapadas para serem geradores de volume. A experimentação simbiótica entre modelagem plana e moulage obedecem relações visuais e geométricas (abstratas) em consonância com as relações de espelhamento e projeção (radial e ortogonal). Assim como suas influencias neoconcretas, Leandro realiza o resgate humanizador da geometria no trato de linhas, planos e suas relações geométricas trabalhando-os com sincera humanidade, refutando a lógica positiva da frieza e racionalismo exacerbados. Renovação da linguagem geométrica.
Aos sons de delicados cristais em atrito, e no trecho “I think it's dark and it looks like rain” Robert Smith (na trilha do desfile - “Plainsong” - que abre o cd “Desintegration”) parece anunciar o princípio cromático obscuro da coleção e a presença da água (refletora. Onde Narciso viu seu reflexo) nos cabelos inspirados na imagem tarkovskyniana do filme “O Espelho”. A cartela de matizes compõe a faixa de ausência à presença da luz (do preto - passando por duas tonalidades de cinza - ao branco) acompanhada pelo prateado e pelo neutro amarelado presente na luz incandescente e em entretelas. O percurso cromático em TRANSVERSAIS inicia-se no obscuro, surgem os cinzas e o prata refletor que (por fim) recepcionam a luz.
Os calçados foram pensados cuidadosamente na progressão tonal do desfile. A altura das plataformas equilibra a proporção da figura através da contribuição na sua verticalidade. A progressão formal dos acessórios varia na angulação (aguda e obtusa) das plataformas e na variação sutil de recortes e materiais. Nota-se a preocupação em projetar um calçado que ao invés de saltar em protagonismo na imagem constitui junto com a roupa uma imagem una.
Os materiais variam entre brilhantes/foscos e translúcidos/opacos. Tules e organzas convidam que o olhar as atravesse, para ver a carne e o entorno através delas. Vinis e laminados rebatem luzes e imagens. O equilíbrio é estabelecido pela opacidade de tricolines e entretelas. Também são utilizados a malha acamurçada, o couro sintético, a lã de camelo e o tecido com padronagem risca de giz.
Há presença marcante e pontual da superfície bordada com fragmentos de espelho no colete de shantung de seda (que assim como um espelho possui seu verso fosco e a face frontal refletora). Igualmente, há presença de um vestível de papel laminado que parece discutir a fragilidade própria dos espelhos. Interessante pontuar o impacto promovido pelo encontro com o adorno facial composto por um espelho no qual ao olharmos em busca da face de outrem vemos a nós mesmos. Vemos-nos na face do outro, trajando a indumentária proposta.
O acabamento a fio (em consonância com a borda crua dos espelhos) e o cós com aplicação de elástico (conforto e rapidez) dialogam com vontades contemporâneas.
Na beleza proposta há o rosto pálido velado por cabelos (captado também pela cerimônia da separação de Kawakubo no outono/inverno 2015). O rosto (na função de reconhecimento e identificação - apontado como um locus da identidade) apresentado em veladura capilar inquieta-nos a desvelar a identidade da imagem em movimento através da indumentária trajada. Há o emprego de recursos formais e construtivos como: pregas, redimensionamento de punhos e carcelas, sobreposição de planos, abotoamento de pala geradora de volume frontal e golas Mao. Nas inversões de vistas de camisas, golas e atacadores (nos calçados) há sugestão de uma inversão da imagem frontal dos modelos (a percepção frente-costas é transgredida em novas relações perceptivas).
Ao fim do desfile (e em contato com outras reminiscências) condensa-se a figura-título deste texto. Ao lembrar da exposição “Waltercio Caldas: O Ar Mais Próximo e Outras Matérias” na Pinacoteca (2013) emerge com certa convicção a imagem da obra “Condutores de Percepção” (1969), considerado trabalho chave no percurso artístico de Waltercio, o qual possui obras que dialogam (dentre outras questões) com a gravidade, espelhos e a iminência do vazio. Na captação da tensão circundante, nas tensões psíquicas causadas no observador e na demarcação de limites no vazio, o trabalho da Caldas pode ser comparado com um “entre chaves” ( [ ] – Logo da marca de Leandro) e ser associado a importantes questões levantadas por Leandro. Indícios preciosos são dados ao elencar os materiais de “Condutores de Percepção”: vidro e prata em caixa revestida (internamente) de veludo. Os primeiros espelhos produzidos (com a configuração mais próxima a atual) eram compostos por uma superfície de vidro coberta por uma fina camada de prata. “Condutores de Percepção” seria a demarcação de um espelho? O título da obra fornece indícios para essa inferência. De acordo com o que foi previamente discutido é possível fazer leitura do espelho como um condutor de percepções assim como a coleção TRANSVERSAIS. Por fim, a crítica de Lorenzo Mammi ao trabalho de Waltercio parece oportuna também à coleção TRANSVERSAIS - :
“Como duas oscilações próximas, mas diferentes, que entram em fase, pensamentos e matéria criam assim uma perturbação, uma vibração secundária, que não pode ser reconduzida a nem uma nem outra freqüência principal, embora seja, com toda evidência, um reflexo delas. A substância do trabalho [...] está justamente nessa vibração, algo que não é corpo nem idéia, algo que não enxergamos na obra, mas que podemos intuir por meio de ou graças a ela.”
Dentre diversos elementos, o que pode ser intuído por meio da coleção? Pistas ontológicas. TRANVERSAIS como condutores de percepção. A condução escolta aos tortuosos caminhos da identidade no percurso de vestir-SE.